quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O Vale dos Reis ou A Aventura - Parte V

Parte I
Parte II
Parte III
Parte IV

No jantar da segunda-feira à noite o casal maravilha sumiu-se da minha mesa e em troca apareceu uma moça com um menino. Mostrou-se que esses dois eram de fato os passageiros que integravam o meu grupo: Katrin e Luis, sendo que o menino tem 9 anos de idade, mas parece ter uns 12. O casal sem simpatia foi sentar-se em uma outra mesa e não mais tive alguma coisa a ver com ele, o que me alegrou sobremaneira. Katrin já foi reclamando da mesa que era muito alta para o menino e se eu me importaria se eles procurassem uma outra mesa para se sentarem na próxima refeição, que seria então o café-da-manhã de ontem. Disse-lhe que para mim tudo era festa e assim ficamos acertadas de que na manhã do dia seguinte teríamos uma melhor mesa para o menino.

A noite foi tranqüila e apesar do ar-condicionado deu para dormir muito bem. Mohammed havia dito que seríamos despertados às seis da manhã para o café-da-manhã e o passeio ao Vale dos Reis sairia então às sete horas.

Às seis horas da manhã toca o telefone para despertar o turista adormecido. A nova mesa do café-da-manhã mostrou-se ter sido um péssimo negócio: no meio dos espanhóis. Mais tarde Mohammed nos explicou que não se trata aqui de espanhóis mas sim de sulamericanos. 

Bem que eu achei mesmo que aquelas pessoas tinham um comportamento típico de emergentes: falam alto demais, comunicam-se uns com os outros aos berros, já que os outros estão a quilômetros de distância dos uns, vão ao buffet e carregam tudo o que podem para as mesas, sem querer saber se ainda há outras pessoas presentes com o mesmo direito de comer, param simplesmente no meio do caminho e não se movem nem para a direita, menos ainda para a esquerda e se você tiver o azar de ter caído no meio deles, trate de exercitar tua paciência e resignação e interiormente ficar dizendo “todos são filhos do mesmo Deus e pagaram a passagem do cruzeiro assim como você”. A isso dá-se o nome de democracia, sendo que eu sou da opinião que democracia jamais pode ser sinônimo de falta de educação e bons modos, mas nos dias correntes isso parece ser apenas mais uma de minhas opiniões não compartilhadas pela maioria.

Essas pessoas de fala espanhola perfazem mais da metade da população do navio, seguidas dos alemães que são cerca de um terço e os restantes são de algum outro lugar incerto e não sabido. Mas todos civilizados a ponto não chamarem a atenção como os de fala espanhola.

Pontualmente às sete da manhã o nosso grupo de três pessoas e mais o guia Mohammed saiu do navio rumo a uma perua que iria nos levar então ao Vale dos Reis. Aí já começou minha decepção: nada de fotografias no Vale dos Reis. Tive de deixar as câmeras na perua. Um trenzinho leva então a horda de turistas do estacionamento para a entrada do Vale dos Reis.
Estacionamento dos ônibus e peruas no Vale dos Reis - Aí ficam também as câmeras fotográficas
No caminho é-se literalmente assaltado por vendilhões que são simplesmente tenebrosos. Mas, como eu havia dito outro dia, fiz o favor de esquecer de colocar meu chapeuzinho de andar no sol na mala e assim eu estava urgentemente necessitada de algo para cobrir minhas cãs.

Apesar de no caminho para o Vale dos Reis, que passa por canais e mais canais do Rio Nilo, canais esses que servem para irrigar plantações de milho, cana-de-açúcar, algodão e papiro, terem caído algumas gotas de chuva, o que Mohammed disse significar sorte, pois aqui não chove nunca, eu temia que o sol iria nos castigar e andar no Vale dos Reis sem chapéu seria no mínimo temerário.

Assim, ao passar pela rua dos vendilhões interessei-me por um chapeuzinho pelo qual o vendilhão queria 10 €. Quase mandei-o destinar o chapéu àqueloutra finalidade menos nobre e fui andando e ele atrás de mim e, de pechincha em pechincha, de preço em preço e cerca de 50 metros caminhados, um chapeuzinho com a inscrição “Welcome to Egypt” de um lado e uma estampa de Tutancamon do outro trocou de dono e minha carteira foi aliviada em 20 libras egípcias, o que todos acharam que foi um excelente negócio, sobretudo a minha cabeça.

O contraste entre o Vale dos Reis e as plantações é gritante: o Vale dos Reis é pura areia e rocha amareladas e as plantações verdinhas. O segredo do porquê de as enchentes do Nilo serem abençoadas: é o único lugar onde cresce alguma vegetação e sem enchente nada de vegetação. A natureza tem umas coisas muito engraçadas, né?

Conta-nos Mohammed que no Vale dos Reis já foram descobertas 63 tumbas, mas que ainda faltam tumbas para serem encontradas já que sabidamente há mais faraós, que ele chama de reis, do que tumbas encontradas. O ingresso dá direito a visitar 3 tumbas, sendo que se alguém tiver interesse em visitar a tumba de Tutancamon tem de pagar um ingresso extra de 100 libras egípcias.

Katrin e Luis se interessaram pela coisa e eu não quis gastar tal dinheiro, já que, como bem Mohammed explicou, na tumba não vai se encontrar nada, pois tudo se encontra no Museu Egípcio em Cairo, e eu já havia olhado tudo aquilo e tenho de confessar, nunca vi tanta riqueza junta e isso tudo encontrava-se dentro de um túmulo! Ou seja, o faraó não deixava jóias aos herdeiros, o que significa, a meu ver, mais uma indústria bastante desenvolvida, já que a cada morte, tinham de ser feitos todos os adornos e adereços de novo. E tudo num magnífico trabalho de filigrana. Eu gostaria muito de possuir um ou dois colares dos que vi por lá no Museu...

Na primeira tumba que visitei irritei-me ao extremo: lá dentro havia turistas tirando fotos com celular! Eram sulamericanos da Bolívia, como suas bolsas de viagem os denunciavam. O motivo de não se poder tirar fotografias no Vale dos Reis é que os turistas não se atêm às regras de não fotografar com flash, o que sabidamente danifica as pinturas nas paredes e esses celulares são todos movidos a flash automático. Penso que em breve os celulares também serão proibidos como já o são no Museu Egípcio do Cairo. Eu acho uma pena, mas entendo e acabo até apoiando a coisa.

Por módicas 40 libras egípcias comprei de Mohammed um set de cartões postais do Vale dos Reis, com direito a explicação de cada postal, o que me fez quase dormir. Aliás que quando Mohammed estava nos explicando o Vale dos Reis Katrin cortou sua explicação dizendo que o menino era muito pequeno para tanto palavrório e seria melhor pular aquele pedaço e ir visitar tumbas. Lá se foram ela e Luis para o interior da tumba mais íngrime e profunda que havia e eu preferi algo menos cheio de escadarias, pois se eu tiver de descer algo assim, tenho de depois subir tudo de novo e não estava nem um pouco a fim disso, sobretudo por causa do calor que já era intenso apesar de ainda cedo.

Vi minhas três tumbas e não achei a coisa tão espetacular como contam os livros. Mohammed explicou-nos que o Vale dos Reis é sucedâneo das pirâmides de Gizé, pois aquelas eram muito visíveis e assim vulneráveis aos ladrões de tumbas. Por isso a partir de um faraó qualquer o que de fato é denominado de Dinastia número qualquer coisa, resolveu-se que o faraó seria enterrado na rocha, ou seja, todas essas tumbas eram escavadas na rocha: quanto mais profunda a coisa, melhor. Na entrada do Vale dos Reis há uma maquete mostrando como isso funcionava. Contou-nos Mohammed também que a importância do Faraó Tutancamon não está no que o faraó fez – não fez nada, já que subiu ao trono com 9 anos e morreu aos 18 -, mas sim na descoberta de sua tumba em 1922 por um cidadão chamado Howard Carter: foi a única tumba intacta até então descoberta. Todas as demais já haviam sido anteriormente descobertas e aliviadas em suas riquezas pelos ladrões e isso já há mais de 3 mil anos.

Na volta à perua Katrin quis comprar uma camiseta para Luis. Digo aqui “quis” quando o correto seria dizer “foi obrigada a urgentemente comprar uma camiseta”. Já no café-da-manhã eu havia lhe dito que tanto ela como o menino estavam vestidos com roupas inadequadas para andar no calor. Enquanto eu vestia uma bermuda e camiseta sem mangas, o menino estava também de bermudas mas com uma camiseta de jogador de futebol de mangas compridas e Katrin vestia uma calça comprida preta, uma camisa leve de mangas compridas e por cima um casaquinho preto de mangas compridas. Eu já estava vendo aqueles dois derreterem no calor egípcio que eu já conhecia de Cairo.

Os dois vêm de Hamburgo e foram de trem até Düsseldorf para de lá pegarem um vôo charter até Hugharda. De lá um ônibus, que atravessa o deserto em 3 horas, levou-os ao navio. Deve ter sido pitoresca essa viagem, pois ela me contou que pegaram uma tempestade de areia no deserto e a perua teve de parar para esperar passar a tempestade, já que era só areia voando e não se enxergava mais nada.

No prospecto do cruzeiro sobre o Nilo a agência oferecia como extra essa transferência de Hugharda até o navio em Luxor, mas quando eu olhei no mapa achei a coisa indígena demais e resolvi organizar-me por conta própria, da forma como relatei ontem.

Com a ajuda de Mohammed Katrin conseguiu comprar uma camisa de algodão muito bonita para Luis, com o que o menino estava se sentindo bem melhor. Era por volta das 8:30 da manhã e o sol já estava mais do que inclemente.
Mohammed e Luis com sua nova camisa
Saímos do Vale dos Reis para o outro lado do morro visitar o Templo de Hatschepsut. 
Templo de Hatschepsut. Atrás, do outro lado do morro, fica o Vale dos Reis
Hatschepsut foi a única mulher no antigo Egito a subir ao trono. Governou durante 21 anos de 1.479 a 1.458 a.C., consta do meu guia de viagens, a placa na entrada do templo diz outra coisa: Templo da Rainha Hatschepsut, XVIII Dinastia – 1495 a 1475 a.C. Diz Mohammed que na verdade ela foi apenas Rainha-Regente, pois governou no lugar do falecido faraó, seu marido, cujo filho ainda era muito pequeno para subir ao trono. De qualquer forma foi suficientemente poderosa para mandar construir esse templo.

Maiores detalhes sobre o templo não conheço, e sem internet para perguntar à Wikipédia, fico aqui devendo a explicação. De qualquer forma eu nunca havia ouvido falar dessa mulher e, se de repente a gente teve isso em alguma aula de história, passou-me desapercebido. 
A tumba do construtor do templo de Hatschepsut - que dizem ter sido o amante da rainha - cuja entrada fica ao lado do tempo. Atrás do morro fica o Vale dos Reis
Katrin fez uma observação bastante pertinente: os planos de construções de Albert Speer no terceiro Reich em Berlin, que a mando de Hitler deveria construir uma nova Germânia, lembram por demais esse templo. Pelo visto os antigos egípcios foram mais copiados do que sonha nossa vã filosofia.

Eram 9:45 e para mim o sol já estava tão insuportável que desisti de subir ao terceiro piso. Katrin e Luis foram lá vê-lo e eu me limitei a tirar uma foto da distância e desci novamente com Mohammed para ir ao quiosque tomar água gelada.
Terceiro terraço: só foto
Saímos de lá na perua com ar condicionado que deveria nos levar para a margem do rio que iríamos atravessar de bote para irmos ao Templo de Karnak, mas antes uma rápida parada para uma sessão de fotos dos colossos de Mennon. Não tenho a menor idéia para que serviam esses colossos, mas tirei as obrigatórias fotos. Talvez em alguma hora eu resolva pesquisar tudo com cuidado para tentar entender um pouco melhor a cultura do antigo Egito. Apesar das aulas fantásticas de História que tive no remoto passado, penso que não cheguei nem na idéia inicial do que foi essa cultura há mais de cinco mil anos.
Colossos de Memnon
Pouco adiante tivemos de parar para dar passagem a um rebanho de ovelhas.
Ovelhas pedindo passagem. Atente que a mulher ao fundo carrega um filhotinho de ovelha no colo
A travessia do rio foi refrescante para o calor infernal que estava fazendo.
O bote com o qual atravessamos o rio Nilo para visitar o Templo de Karnak
Em chegando à outra margem dirigimo-nos ao Templo de Karnak. Arrastamo-nos seria o termo mais correto pois o sol estava além da conta e sequer uma leve brisa para aliviar um pouco. Há algum tempo eu comprei um termômetro digital que mostra a temperatura interna e externa e para a temperatura externa eu tenho de colocar o sensor do lado de fora. Lá bate o sol de tarde e nos poucos dias de calor que tivemos em agora em agosto, a temperatura externa chegou a indicar 54°C. Com isso eu acredito que a temperatura no sol inclemente deveria estar por volta de uns 60°C senão mais.

Nisso já eram umas 11 horas e o sol maltratando de tal forma que até a respiração ficava prejudicada. Não prestei muita atenção às explicações de Mohammed, pois além do calor infernal meu cérebro não conseguia registrar mais nada.

Tirei algumas fotos e sentei-me à sombra de uma coluna e fiquei apreciando turistas. As particularidades do Templo de Karnak eu posso pesquisar em outro lugar de uma forma mais confortável e menos quente.
Casal de turistas japoneses no Templo de Karnak: só os japoneses tinham uma sombrinha contra o calor
Por volta do meio-dia voltamos para o navio, totalmente acabados pois o programa havia sido por demais de intenso para um calor inclemente. Katrin estava vermelha como um peru e eu não o estava menos.

Às 13 horas foi então o almoço onde novamente trocamos de mesa, para fugirmos dos sulamericanos que depois fiquei sabendo tratarem-se de nossos vizinhos argentinos. As you can see, nobody is perfect!

Durante o almoço foram abertas as cortinas do navio: finalmente estávamos navegando.

Depois do almoço fui dormir: a manhã tinha sido por demais de cansativa, não pelas atividades em si, mas pelo calor. Incrível como o calor acaba com a gente.

Um sentimento único é ver passar a paisagem por um lado tão calma e bucólica, por outro lado tão diferente de tudo que se conhece. Às margens do rio é tudo verde e logo atrás o deserto.
O deserto logo atrás das margens do rio
Mohammed havia nos dito que teríamos de passar por uma eclusa. Já ao nos aproximarmos dela, onde tivemos de esperar por volta de uma hora até finalmente chegar a vez de nosso navio passar, comecei a ver uma porção de barquinhos emparelhados com o navio e homens gritando alguma coisa que não entendi muito bem do que se tratava. Subi ao deck e a cena era surreal: vendilhões nos barquinhos – que a essa altura já haviam se multiplicado -  ofereciam vestidos egípcios aos passageiros. Embrulhavam tudo em sacos plásticos que jogavam para cima para a distinta freguesia escolher o que mais lhes agradava e enquanto isso ficavam negociando o preço da mercadoria. Penso que esse vendilhões havia feito também um estágio na Torre de Babel, pois negociavam em espanhol com os argentinos que lhes compraram sei lá eu quantos daqueles vestidos. O dinheiro punham então dentro do saco plástico junto com a mercadoria que não quiseram comprar e jogavam de volta para dentro do barquinho.

Até dentro da eclusa ainda havia um barquinho com vendilhões defronte ao navio em intensos negócios aos gritos e berros com os argentinos.
Os vendilhões emparelhados ao navio
Um luxo nesse navio é que o serviço de limpeza vem duas vezes por dia: de manhã e durante o jantar. E a cada vez arumam tua cama de uma forma bastante criativa. Depois de passarmos a eclusa já era tarde e eu resolvi me recolher. Ao chegar à cabine deparei-me com a seguinte cena:
Numa cama assim arrumada os bons sonhos são uma certeza

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