Parte II
Hoje vi mais do que claramente que eu de fato detesto o inverno mais pela ausência de sol - os dias são por demais de curtos - do que pelo frio. Sou um ser movido a sol o que provavelmente tem a ver com minhas iniciais, idênticas ao nome do Deus-Sol dos egípcios.
Mas hoje o sol caprichou além da conta e, apesar do filtro solar, estou mais parecendo um peru do que gente, o que me lembra um episódio pelo qual passei há muitos anos em Belém do Pará. Entrei numa loja qualquer para comprar alguma coisa e no caixa a mocinha me olha com ar de compadecida e me pergunta: "A senhora não é daqui, não, né?" Olhei com cara de espanto e lhe respondi que de fato eu não era de lá e sim do Estado de São Paulo, mas que gostaria muito de saber como ela havia concluído que eu não era de lá. Candidamente a mocinha me responde: "Aqui não tem gente vermelha como a senhora!" Mas aqui no Cairo é diferente: cada pessoa te olha e pergunta "Where do you come from?" mas isso penso que se dê antes pela roupa do que pela vermelhidão, ou talvez pela falta de roupa: as mulheres por aqui todas andam de lenço na cabeça, um mais bacana do que o outro. Quem sabe também adiro à moda em algum momento.
Mas, antes de contar o que tudo aconteceu hoje, ainda estou devendo os acontecimentos de ontem à noite.
Joe, o motorista, havia dito que viria me apanhar às 19:15, mas já às 19:00 estava aí. Como eu também já estava pronta, lá fomos nós rumo ao jantar sobre o rio Nilo com direito a um show de dança do ventre.
Apesar de já passar das sete da noite, e sábado ser ainda dia livre dos egípcios, o trânsito continuava caótico. Mas em cerca de 20 minutos chegamos no navio.
Entrada do navio |
Entre um telefonema e outro - acho que vou querer aprender árabe só para conseguir entender porque as pessoas tanto telefonam - Joe me pede que se eu estiver satisfeita com seu trabalho eu escreva um email para o seu chefe assim tipo uma carta de recomendação. Segue-se um rasgar de seda, dizendo que simpática, agradável e descomplicada que fui e que ele teve imenso prazer em me servir de motorista durante esses dias.
Tudo isso para me dizer que hoje ele não poderia vir me buscar, mas que já havia arrumado um amigo para assumir essa árdua tarefa. Perguntei-lhe então se ele também conduzia árabes, ao que ele disse que sim, mas que não gostava muito pois eles eram extremamente impontuais e ele tinha de muitas vezes ficar esperando mais de duas horas até que as pessoas finalmente se decidissem a ir para onde haviam contratado seus serviços. Aproveitei para lhe dizer que eu estava agradavelmente surpresa de sua pontualidade ao que ele mais uma vez agradeceu e pediu para eu colocar isso na tal carta ao chefe.
De repente entram uns homens no palco e logo começou o show. Todas as vezes que ouço essa música com dança do ventre tenho de me lembrar de escolas de samba na avenida. Eu acho que a nossa música tem pelo menos parte de suas raízes nessa música árabe.
Luna, a dançarina do ventre |
Mas o ponto alto do show foi uma dança que eu não conhecia, Tanoura, e é dançada por um homem, um dervixe.
Dançando tanoura |
Terminado o show veio a comida num buffet de self-service. A comida estava boa, mas para o meu gosto a salada estava melhor. De qualquer forma eu achei que valeu muito a pena e, comparativamente, foi o passeio mais barato de toda minha estadia em Cairo: por menos de 35 €, com direito a ser buscada e trazida de volta ao hotel.
Despedi-me de Joe, pedindo que por favor não se esquecesse de na segunda-feira arrumar alguém para estar aqui pontualmente às cinco da matina para me levar ao aeroporto. Prometeu que se não fosse ele seria outra pessoa e que eu não deveria me preocupar.
Hoje cedo, depois do café-da-manhã, pontualmente às nove horas sou abordada por um cidadão que se diz chamar Ahmed - pelo menos um nome árabe que eu conheço e sei pronunciar direitinho - e que seria então meu motorista para o dia de hoje.
Apesar de também falar ao celular, não era tão ocupado telefonicamente quanto Joe e assim pudemos conversar um bocadinho. O carro dele era um tanto quanto inseguro: o vidro da frente era todo rachado e em um ponto havia um buraco que parecia buraco de bala. Ele me garantiu que não era: coisa de moleques atirando pedras.
Levou-me então incialmente ao bairro copto, onde moram os cristãos ortodoxos e onde se encontram inúmeras dessas igrejas coptas.
Pouco antes de lá chegar mostrou-me uma mesquita, dizendo ser aquela a mesquita mais antiga de toda África. Despediu-se de mim no bairro copto, dizendo que dentro de uns quarenta a quarenta e cinco minutos me aguardava na tal mesquita.
Fiquei com cara de espanto, mas, seja lá o que Deus quiser, aventurei-me sozinha por aquele bairro onde todo mundo me interpelou com o "Where do you come from?" Ahmed havia me recomendado não conversar com ninguém, não aceitar ajuda de ninguém, enfim, todas aquelas recomendações que Joe também vivia me dando.
Nessas alturas eu estava muito mais interessada no ambiente do que nos coptos propriamente ditos e fiquei procurando o festival de antenas parabólicas que Pedro havia mencionado ontem. De fato ontem tanto na ida como na volta das pirâmides o que me chamou por demais a atenção nem foram as antenas parabólicas, mas muito mais os prédios na laje como nossos emergentes brasileiros gostam de construir em últimos tempos. De fato que em cada moradia na laje há uma parabólica, mas chamou-me menos a atenção, talvez por na Alemanha também havê-las em profusão.
Mas no bairro copto vai-se andando pela rua e de repente vê-se uma escada que desce aparentemente para lugar algum e em cima uma placa:
Na calçada desce uma escada para um bairro |
Resolvi fazer-lhes o favor e lá me fui para as catacumbas, que de fato não são catacumbas mas apenas ruelas super apertadas que me lembraram um pouco a Via Dolorosa em Jerusalém.
São Jorge e o dragão no bairro copto |
Ruína romana no cemitério copto |
De qualquer forma saí de lá correndo e voltei para as vielas, onde então me deparei com uma sinagoga, onde infelizmente também não se podia fotografar.
Pelo menos na sinagoga vendia-se um livrinho com a história e algumas fotos do interior, que comprei por 25 liras egípcias. O cidadão que me vendeu o livrinho me acompanhou e num inglês mais do que capenga me arrastou para os fundos da sinagoga, dizendo que queria me mostrar uma coisa.
Atrás de num monte de bananeiras ele apontou para uma coisa e ficou falando, falando e eu não entendendo nada, até que finalmente fez-se uma luz no meu cérebro na área relativa à compreensão telepática de diálogos em línguas ininteligíveis. O que o cidadão estava me contando e mostrando era que ali, bem naquele lugar, há cinco mil anos passava o rio Nilo e bem naquele ponto Moisés foi salvo das águas pela filha do faraó e é por isso que ali existe aquela sinagoga que desde 1999 não mais é usada para serviços religiosos. Desculpou-se por não poder me explicar do porquê pois ele falava muito pouco inglês e isso era muito complicado para explicar.
Aqui há 5.000 anos Moisés foi salvo das águas do rio Nilo pela filha do faraó |
Mas, acabei fazendo o erro imperdoável de outra forma: os dois lugares anunciados pela placa na escadaria eu não fui visitar apesar de um dos "Where do you come from?" ter começado a ficar histérico quando saí da sinagoga e fui para o lado errado no entender dele.
Tenho de lhe dar razão, deixei de ver as duas coisas mais importantes no tal bairro copto, mas acontece que Ahmed havia combinado comigo na mesquita às 10:30 e nisso já eram 10:45 e eu ainda tinha de encontrar o caminho de volta e ir a pé sozinha pelas ruas de Cairo.
Em finaqlmente chegando na primeira mesquita construída na África, de fato Ahmed estava esperando me dizendo que eu deveria então ir lá dentro visitar a mesquita. Para poder entrar eu precisava de algo tipo um pano de cabeça, o que eu obviamente não havia trazido junto. Mas eu tinha na mala uma canga de saída de praia, que acabou fazendo as vezes de pano na cabeça. Pelo menos eu achei que isso era suficiente.
Antes de entrar na mesquita tem-se de tirar os sapatos, o que já é um tanto desagradável, mas como eu nunca tinha entrado numa mesquita antes - naquelas de Jerusalém não permitiram pessoas que não eram muçulmanas entrarem - acabei fazendo todos os sacrifícios, o maior deles não sendo ter de tirar os sapatos, mas sim ter de colocar uma espécie de sobretudo verde papagaio de mangas compridas, com direito a touca e tudo o mais. E isso num calor infernal de mais de 35°C! Ainda bem que ninguém quis me fotografar daquela jeito que mais parecia fantasia de carnaval do que roupa de ver Alá na mesquita.
O centro da mesquita com uma visitante trajando a roupa verde papagaio. Pelo menos a minha canga permitiu que eu não tivesse de colocar o capuz dessa vestimenta! |
Fui-me embora depois de muitas fotos, não achando nada demais na tal mesquita, mas contente que pelo menos Alá permitiu fotografias, coisa que nas duas outras correntes religiosas foi-me proibido.
Ahmed levou-me então a um lugar chamado Citadela. Transcrevo aqui o que diz a Wikipédia,pois eu também não sabia disso:
A Cidadela do Cairo é um dos pontos turísticos mais populares da cidade do Cairo, no Egito. Foi fundada em 1176 pelo famoso líder muçulmano Saladino, tendo sido a sede do governo egípcio por quase 700 anos.Está dividida em três partes, sendo que a principal área turística da Cidadela situa-se na parte sul, onde se localizam a Mesquita de an-Nasr Mohammed (a única edificação mameluca que resta na Cidadela) e a Mesquita de Mohammed Ali do século XIX.Nisso eram 11 horas e Ahmed me disse para eu ao meio-dia estar pontualmente de volta no lugar onde me deixou pois ali ele não poderia estacionar.
Citadela em Cairo |
Lá em cima encontrei um casal de São Paulo que disse que a sujeira do Cairo só não é pior do que a sujeira na Índia. Não sei avaliar, e acho que nos próximos anos tambén não terei condições de avaliar pois a Índia não faz parte de minhas prioridades turísticas.
A Mesquita de Mohammed Ali é de fato bastante imponente, apesar de muito suja por fora, mas isso penso que seja por causa do vento que faz acumular areia em todas as reentrâncias e salências, coisas que mesquitas têm em profusão. Não entrei nessa mesquita, mesmo porquê o relógio caminhava a passos largos para o meio-dia. Mas o sol estava mais do que inclemente e eu já estava pegando fogo de tanto calor.
Vista de Cairo do alto da Citadela |
Ahmed disse então que iria me levar ao Museu Egípcio e que depois de duas horas iria me buscar para levar de volta ao hotel, ou então, se eu quisesse, poderia ir a pé, já que o hotel era logo ali virando a esquina. Depois da experiência da Citadela e do Bairro Copto, onde o tempo que Ahmed programou para as respectivas visitas foi muito curto, resolvi me despedir dele ali mesmo e disse que eu voltaria ao hotel a pé e que ele estava dispensado.
Quando ele me deixou em uma esquina, dizendo que o Museu ficava no meio da quadra eu quase que fiquei com raiva de mim mesma: ontem de manhã eu estava bem ali ao lado, ou seja, deveria ter aproveitado o horário da manhã para ir tirar fotos.
Entrada do Museu Egípcio |
Eu não sou muito amiga de visitar museus e assim sou péssima para dizer alguma coisa a respeito. O que ficou me martelando na cabeça o tempo inteiro foi que os antigos egípcios tinham um culto aos mortos tão exagerado que acabou por salvar essa civilização do esquecimento.
Por outro lado a crença na vida depois da morte não deixa de ter sido acertada: todos aqueles mortos ressuscitaram para a vida eterna dentro de um museu.
Duas coisas me impressionaram por demais: a riqueza e os detalhes das jóias e o incomensurável número de sarcófagos.
Aliás que vendo aquele monte de tumbas e sarcófagos veio-me à mente Napoleão e sua tumba no Invalides: clara e nitidamente copiado dos egípcios. E por falar em Napoleão, descobri ontem que esse hotel onde estou foi originariamente o quartel-general de Napoleão durante a Campanha do Egito.
Como os malvados egípcios não me deixaram fotografar no interior do museu, só de pirraça coloco aqui a tumba de Napoleão no Invalides:
Tumba de Napoleão em Paris: cópia dos egípcios? |
Amanhã a viagem segue rumo a Luxor e o que eu posso dizer desses três dias em Cairo é que apesar de tudo valeu muito a pena, sobretudo pela experiência e como preparativo para uma próxima visita que com certeza há de vir em alguma hora.
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