Parte II
Parte III
O vôo do Cairo
a Luxor foi excelente, apesar do avião lotado. Meu lugar era na janela, mas
preferi o corredor, opção com a qual o casal que já estava lá sentado concordou
na hora.
Antes de
entrar nos próximos detalhes penso que se faça aqui necessário prestar alguns
esclarecimentos sobre essa minha viagem. De fato a viagem propriamente dita é
um cruzeiro sobre o rio Nilo de Luxor até Assuan. Vi uma oferta imperdível
dessa viagem lá no longínquo fevereiro e resolvi comprá-la: uma semana num
navio sobre o rio Nilo com refeições e passeios. Paguei a entrada e marquei as
férias para essa primeira semana de outubro, coisa bastante prática, já que na
Alemanha 3 de outubro é o feriado da reunificação alemã e feriados e
finais-de-semana não contam como dias de férias. Dessa forma de segunda a
segunda eu só precisei de cinco dias de férias, o que também acabou sendo um
excelente negócio.
Não é meu
costume marcar uma viagem com tanta antecedência, mesmo porque nunca se sabe o
que tudo ainda vai acontecer e de fevereiro a outubro muita água ainda tem de
passar por debaixo de muitas pontes até um dia desembocar no rio Nilo.
Marcada
estava a viagem, a entrada já paga, mas como chegar de Frankfurt a Luxor ida e
volta? Esse pedaço não estava incluso no pacote. Vôo direto não encontrei, com
o que restava o vôo via Cairo e aí pensei que seria um desperdício sem fim
conhecer de Cairo apenas o aeroporto. Foi assim que acabei chegando em Cairo já
na sexta para então na segunda, que é hoje, vir para o cruzeiro sobre o Nilo,
que é o verdadeiro objetivo dessa viagem.
Já no avião
eu fiquei maquinando com meus botões como eu iria fazer para chegar até o
navio, mas pensei que na pior das hipóteses eu acabaria pegando um taxi. Ao
desembarcar no aeroporto internacional de Luxor, que vem a ser um nada de
aeroporto de tão pequeno, havia uma porção de agentes com placas com nomes de
pessoas. Fiquei de olho e em uma delas vi o nome da agência que haviam me dito
ser a responsável pela realização da viagem. Fui lá conversar com o homem,
perguntando-lhe se também havia lugar para mim no transporte e qual não é minha
surpresa ao ver que meu nome estava em sua lista e ele já tinha até o número da
minha cabine!
“Mais sorte
do que juízo” diz o dito alemão. O camarada passou a mão na minha mala e me
levou até uma perua e lá me fui com um motorista rumo ao navio. Os passageiros
cujos nomes estavam escritos na placa do cidadão ainda não haviam chegado com o
que estavam somente eu e o motorista naquela viatura andando por umas quebradas
ao longo de um canal – ou até um rio, sei lá – tão sujo que a água parecia
parada. Os reflexos daquelas construções na laje ao lado de palmeiras de
damascos dariam fantásticas fotos. Novamente uma paisagem mais do que irreal e
tive de me lembrar da brasileira ontem na Citadela, quando disse que o problema
dos egípcios não era de pobreza e sim de sujeira. Eu não sei o que dizer a
respeito. É um mundo por demais de diferene e distante do meu que não arrisco
um palpite, já começando pelo fato de eu não entender sequer a respiração, que
diria alguma frase dessa língua.
Quem sabe
um dia eu volto para fazer uma caminhada ao longo de um canal desses só para
poder tirar as fotos que estão esperando para serem tiradas. É tudo tão
diferente de qualquer coisa que eu conheço com uns contrastes como por exemplo
no prédio na laje o andar do meio ter um acabamento perfeito ou a outra casa
com uma baita de uma pintura de uma cena ribeirinha na fachada.
Construção na laje na beira do rio Nilo em Luxor |
De repente
o motorista sai da pista, pista essa, diga-se de passagem, totalmente vazia e
sem trânsito. Acho que todos os carros egípcios foram parar no trânsito de
Cairo. Emboca em uma rua de terra – areia seria o nome mais adequado – e vai
serpenteando como uma cobra cascavel entre o nada e o coisa alguma. Lembrei-me
do mocinho que foi me buscar no hotel hoje cedo pontualmente às cinco da
madrugada, andando naquelas avenidas de Cairo, totalmente vazias e escuras e
achei que se naquela ocasião eu não havia sido raptada, não seria agora que isso
iria acontecer, mas não ousei perguntar ao motorista onde iríamos parar.
De repente
ele pára defronte a uma cancela e vem um outro Zé (Yussef, penso eu, seria o
correto) abrir e lá entramos numa floresta de palmeiras. Depois de uns
solavancos em uma clareira há uma porção de carros e ônibus parados. O
motorista pára e sai, coisa que eu também faço. Esse motorista era de poucas
palavras, ou talvez pouco inglês, mas tinha um celular no qual falou algumas
vezes em árabe. Quando me encontrar com o Pedro vou trocar umas idéias com ele:
parece que as parabólicas deram lugar aos celulares. Eu acho que isso aqui já é
quase que doença, apesar de achar que essa doença é meio universal. Será que
por aqui não é proibido falar ao celular quando se está dirigindo?
De repente
de trás dos ônibus sai um outro sujeito que pega minha mala e eu tenho de
segui-lo. O motorista sumiu. Deve ter voltado para o aeroporto. Atravessamos
uma ponte meio cambaleante e chegamos em um navio do qual passamos para um
outro navio, do qual passamos para um outro navio, até chegarmos a uma
recepção, onde o cidadão já me enfiou uma ficha para preencher e pediu meu
passaporte. Mandou-me então ao recinto ao lado, que vinha a ser o bar, para que
eu recebesse o meu drink de boas-vindas. Esse drink fazia parte do pacote: um
minúsculo copo de um suco ruim que parecia de maracujá ou multivitamina. Não
gosto nem de um e nem de outro.
Mas, como
não havia tomado café-da-manhã, a breakfast bag que o sujeito do hotel na noite
anterior havia solenemente me prometido para as cinco da manhã não foi
entregue, e no avião, além de um copo de suco que se dizia de laranja mas tinha
gosto de qualquer outra coisa, nada mais havia, eu estava de fato com fome e
queria um café com um pãozinho. Eu fiquei com muita raiva no avião quando vi
alguns passageiros com o pacote de café-da-manhã do Four Seasons. Apesar que
tenho de dizer que até agora foi a primeira vez que vi impontualidade aqui no
Egito.
Perguntei
ao recepcionista se não havia assim um café com pãozinho em algum lugar da
cozinha e como num passe de mágica me aparece um sujeito com uma bandeja com
dois pãezinhos e uma xícara de café-com-leite. Tá certo que faltou a manteiga,
mas a cavalo dado sabidamente não se olham os dentes, e no final matou minha
fome e foi de graça já que nada quiseram cobrar.
Nisso o
recepcionista me entrega um cartão com o número do quarto, me dizendo que minha
mala já estava defronte a porta esperando e que o passaporte ele iria entregar
só no dia seguinte pois tinha de resolver as formalidades com todos passaportes
ao mesmo tempo e ainda havia muita gente para chegar.
Aliás que
eu tenho de dizer que depois da sexta-feira no aeroporto, onde recebi o visto,
foi a primeira vez que tive de apresentar o passaporte. Misteriosamente no
check-in do aeroporto ninguém quis vê-lo e assim ele ficou durante toda a
viagem bem onde ele estava o tempo inteiro: dentro da bolsa.
A cabine do
navio é muito boa, no último andar, com um pequeno balcão que vai permitir que
se veja bem o rio quando estivermos navegando. Apesar que o deck superior
também é bastante interessante,com direito a piscina e bastante sol. Aliás que
o calor é de matar, mas isso eu já falei de monte. O ruim da cabine é que não
consigo desligar o ar condicionado. Mas penso que seja melhor com
ar-condicionado e cobertor do que não conseguir dormir por causa do calor.
A cabine do navio com o pequeno balcão |
Depois de
me instalar e trocar de roupa resolvi ir andar lá fora e vi a imensidão de
navios atracados sempre um ao lado do outro. Uma paisagem interessante, e uma
gente que parecia saída de algum filme de mil-e-uma-noites: homens de vestidos
compridos de todas as cores, carregando pacotes para os navios.
Infelizmente
durante o passeio apareceram alguns do “Where do you come from?” e eu tive de
mudar meus planos e rumo, mesmo porque já não estava agüentando o sol
inclemente. As recomendações de Joe e Ahmed ainda estava presentes em meus
ouvidos “Não converse com ninguém e não aceite ajuda de ninguém pois eles vão
querer dinheiro de você.”
Plantação de papiro no atracadouro dos navios |
Aliás que
essa parte do dinheiro é o pedaço mais doloroso dessa viagem: eu realmente não
sei mais o que é certo, o que é errado, qual o valor ou desvalor desse dinheiro
aqui. O cidadão do aeroporto veio me dizendo que o transporte custava 15 € e
que por volta das 11 horas ele apareceria no navio para cobrar. De fato um
transporte desses para nossos parâmetros alemães é bastante em conta. Aqui eu
não sei dizer. Na conversão deu 115 libras egípcias, o que me pareceu bastante
barato, mas se comparado com as 270 libras que paguei pelo transporte, viagem
sobre o Nilo, com direito a show e jantar no sábado à noite, eu tenho de achar
caro.
Quando eu
já estava na fila do check-in do avião em Cairo o mocinho que havia me levado
ao aeroporto apareceu e com cara de xuxu me diz que eu havia esquecido de
pagá-lo! Quase engasguei e lhe disse que ele que acertasse com Joe, já que eu
havia acertado tudo com ele. Se ele quisesse eu poderia lhe dar 10 libras de gorjeta.
Não quis e foi-se embora.
Com o
sujeito do transporte do aeroporto eu já acertei a viagem de volta, com o que
também esse pedaço já está garantido. Mas ele me disse que no navio eu teria um
guia reponsável pelas pessoas que compraram a viagem da mesma agência que eu.
Ele iria se apresentar e vir falar comigo e eu não deveria aceitar ajuda e nem
falar com ninguém outro. Essa frase já conhecemos, né?!
Resolvi
subir no deck e tirar algumas fotos quando sou interpelada em alemão por um
sujeito sentado a uma das mesas, que estavam todas vazias. Apresentou-se como
sendo Mohammed, meu guia de viagem e que ele estava ali para atender a todos os
meus desejos e pedidos e me dar todos os esclarecimentos necessários e ... que
eu não falasse com ninguém e não aceitasse ajuda de ninguém que ele era
responsável por tudo.
Como uma
perfeita ladainha decorada ele começou a me recitar todo o programa que iríamos
fazer e qual seria o decorrer da viagem. Eu havia comprado um pacote
suplementar com direito a uma visita mais detalhada a Luxor, e em função desse
passeio o programa havia solicitado que se chegasse cedo o suficiente para o
check-in. No final das contas o tal programa diz Mohammed vai ser feito no
próximo domingo, quando então estivermos de volta e com essas e mais
aqueloutras eu não teria precisado levantar tão cedo para chegar em Luxor com um avião
madrugador.
Deixo de
entrar nos detalhes que Mohammed, o profeta, contou sobre o que tudo iria
acontecer no passeio, pois eu vou contar à medida em que as coisas forem acontecendo.
No programa do pacote havia escrito que era tudo inclusive menos a gorjeta e as
bebidas. Não havia entendido muito bem a história das gorjetas, que sempre
achei que ou se dá ou não se dá, ao que Mohammed didaticamente me diz que eu
tenho de pagar-lhe 25 € de gorjeta para ser dividida entre todo o pessoal do
navio, desde o maquinista até o recepcionista. Pagamento adiantado, por favor.
Dinheiro egípcio é coisa complicada ...
Mohammed, o guia no deck do navio |
A minha
surpresa, porém, foi novamente o alemão impecável de Mohammed. A resposta foi a
mesma dos anteriores: nunca saiu do Egito e aprendeu esse alemão na
Universidade do Cairo. Perguntei se os professores eram alemães nativos – o que
eventualmente poderia explicar inclusive a excelente pronúncia – mas ele me
disse que não, seus professores eram todos eles egípcios e que com a profissão
ele também foi aperfeiçoando a língua. Mas quando ele me perguntou onde eu
trabalhava e eu lhe disse que minha empresa era uma 100% afiliada de uma outra
empresa – em alemão o termo é exatamente esse “empresa filha de outra empresa”
– ele entendeu que era minha filha que trabalhava na empresa. Como esse fato
também é correto, deixei a conversa desse tamanho. Não estava a fim de dar
aulas de alemão ao profeta, apesar de ele ser bastante simpático.
Contou-me
Mohammed que com a revolução no começo do ano passado o turismo despencou e os
turistas desapareceram, fazendo com que a vida deles ficasse muito mais difícil
do que já era antes. Disse que nesse trecho do rio existem cerca de 300 navios
que fazem esse cruzeiro e muitos deles tiveram de encerrar as atividades por
falta de clientela. De fato aqui no nosso navio não há tantos passageiros, o
que de minha parte eu nem acho tão ruim assim.
Interessante
que Ahmed ontem também não era muito satisfeito com a tal revolução, por achar
que os Irmãos Muçulmanos não estão resolvendo problema algum, muito ao
contrário. Ahmed acha que logo vem mais uma revolução. Joe, por sua vez, era
meio dividido com a revolução: por uma lado ela acabou com seu pequeno negócio,
pois ele tinha um hostel bem perto do Tahir Square, mas por outro ele achava
que o governo Mubarak tinha de terminar. Gosto de ouvir a opinião do povo,
apesar de ter de confessar que o assunto não me interessa diretamente e assim
voltemos ao navio.
Os
passageiros não deixam de ser também um povo meio folclórico, com muitos
espanhóis, alguns alemães e ingleses. Há também uma indiana que veste um sari
com bastante carne aparecendo, o que deve ser uma boa coisa nesse calor.
Tentei ver
se não havia algum jeito de eu ir até a cidade de Luxor, já que aqui não havia
o que fazer, ao que Mohammed disse que Luxor era longe e não tinha como ir lá.
Que eu aproveitasse o dia para descansar.
À uma da
tarde foi o almoço, que não foi lá essas coisas, mas deu para encarar.
Praticamente tudo comida árabe com algum tempero que não faz muito meu gênero,
mas a gente vai levando. De acordo com Mohammed, os lugares na mesa são
demarcados e fixos do começo até o final da viagem e que pela mesma agência
onde reservei a passagem viriam mais duas outras pessoas, com o que seríamos
três em uma mesa redonda. Sentei-me no meu lugar e os dois lugares ao lado
ficaram vagos pois os passageiros ainda não haviam chegado. Mohammed disse
mesmo que chegariam mais tarde e por isso o nosso passeio da tarde foi
transferido para o próximo domingo.
De repente
entram dois homens no salão, um tão grande que quase batia a cabeça no teto e o
outro menorzinho. Os garçons todos vieram dar-lhes a mão e boas-vindas cheios
de “Nice to see you” e isso tudo debaixo de minhas barbas. Os dois sequer
tomaram conhecimento de minha pessoa e tomaram assento nos dois lugares vagos a
meu lado. Um casal homossexual de meia-idade, com direito até a aliança de
brilhantes! Mais folclórico impossível. Devo dizer que nada, absolutamente nada
tenho contra homossexuais e desde sempre sou da opinião que cada um sabe de si
e eu sei de mim.
Assim como
quero que os outros me deixem em paz, também eu deixo todos em paz. Mas o
problema ali era por demais de visível e acintoso: pelo menos cumprimentar a
pessoa com quem se vai dividir a mesa a cada três refeições durante uma semana
seria altamente recomendável, apesar de essa pessoa ser uma mulher sozinha!
Pelo menos minha mãe me ensinou assim e penso que a mãe deles também tenha
feito o mesmo.
Ainda
fiquei um tempo ali sentada observando as pessoas se servindo no buffet e no
final acabei me levantando com um sonoro “Mahlzeit” que é o cumprimento alemão
para o início ou o final de refeições, ou quando se cruza com alguém na hora do
almoço. Pelo menos os mocinhos responderam, o que mostra que nem tudo está
perdido na educação do nem tão simpático casal.
Resolvi
então dormir e escrever esse texto, já dizendo que não sei quando vou fazê-lo de
novo.
Mohammed
ligou agora há pouco dizendo que amanhã temos de sair pontualmente às sete da
matina para visitar Luxor. Penso que o casal maravilha também vai junto. Vai
ser muito divertido, já estou vendo. Caso eu não dê notícias é por causa do
preço da internet: 10 US$ por 30 minutos é um assalto à mão armada. E se ainda
por cima a rede for lenta vai ser um descalabro sem fim e eu não vou conseguir
colocar as fotos que quero colocar.
São vários navios um ao lado do outro. Atravessa-se de um para o outro até se chegar ao navio desejado |
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